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03/04/2021 às 15h10min - Atualizada em 03/04/2021 às 15h10min

A solidão e as dores de quem mora sozinho em tempos de pandemia

Yahoo Notícias
Foto: Divulgação
Dizem que a única companhia que podemos garantir por toda vida é a nossa própria. Pessimistas dizem que vamos todos morrer sozinhos. Os otimistas, que é a oportunidade perfeita de aprendermos a curtir a própria companhia. Independentemente do caso, talvez nenhum dos dois lados tenha considerado a possibilidade de uma pandemia de coronavírus, que pegou todo mundo de surpresa, principalmente quem mora sozinho.

Como é morar sozinho em tempos de pandemia
Já estamos há um ano em uma situação que pode ser considerada calamitosa. Recentemente, os governos de diversos estados do Brasil anunciaram o retorno à fase vermelha por conta do aumento no número de casos e o possível colapso do sistema público de saúde. Enquanto nos corredores dos hospitais o caos corre solto, aqueles que toparam ficar dentro de casa pelo bem de todos viram o seu mundo interno também cair por terra. O texto faz parte do projeto editorial "Segurando a Onda", serão 21 textos sobre saúde mental.

"Para mim, a maior dificuldade foi ficar longos períodos sem conversar (ao vivo) com alguém", conta a designer Fernanda Ene. "Moro sozinha há vários anos e, na verdade, gosto de ter o meu canto e curtir esse tempo comigo mesma, mas também gosto de sair para espairecer e me divertir na companhia das minhas amigas. Com a pandemia, acabei perdendo essa parte e passando mais tempo sozinha dentro de casa. Eu não tenho costume de falar ao telefone ou fazer chamadas de vídeo, então foi um desafio para mim. Apesar de ter sido difícil, eu acho que consegui administrar melhor do que o esperado — e até melhor do que outras pessoas que eu conheço e que não moram sozinhas".

Jéssica Guanabara Fernandes é jornalista e mora em Salvador, na Bahia. O estado virou refúgio de muita gente de do Sul e do Sudeste, como São Paulo, que sentiu precisar de um respiro da cidade grande. Hoje, no entanto, o estado se vê em um momento tão complexo como o resto do país em relação à doença. E, mesmo com a aparente normalidade para quem vê de fora, a profissional explica que viveu ainda mais na pele um temor que sempre a acompanhou: "Era um medo que eu já tinha antes e que se intensificou na pandemia: o de passar mal durante a noite e não ter ninguém para me ajudar", explica. Senti que isso piorou porque eu simplesmente não podia ligar para alguém me ajudar caso isso acontecesse ou ir ao hospital, porque tudo era um risco de contágio, então, qualquer dor de cabeça diferente ou enjoo porque comi algo que não digeriu bem já me deixava ansiosa com a possibilidade de precisar ir para a emergência".

Em tempos de crise, ter uma rede de apoio próxima faz toda a diferença - mas o que fazer quando, além de uma pandemia, você mora fora do país? Fernanda, que vive em Toronto, no Canadá, reflete também que gostaria de ter tido a família ao lado para lidar com todas as questões que envolvem o momento atual. "Eu acho que teria sido mais fácil se eu tivesse familiares por perto, para que eu pudesse eventualmente visitar para conversar e ter algum tipo de interação. Na verdade, além de estar isolada dentro de casa há meses por causa da pandemia, eu moro sozinha no exterior, então eu passei esse tempo inteiro sem ver minha família. Eu tenho certeza de que teria sido muito mais fácil se eu morasse com outra pessoa, porque ter alguém para conversar e compartilhar sentimentos nesses momentos difíceis sempre ajuda", reflete ela.

Jéssica namora uma pessoa que vive a 30 minutos de distância da sua casa, mas mesmo a proximidade não fez com que o casal mantivesse a mesma frequência de encontros que antes. Eles se viam aos finais de semana, no entanto, quando a situação ficou ainda mais séria, decidiram passar alguns meses sem se encontrarem, para diminuir ao máximo os riscos. O aniversário do namorado, que aconteceu em maio, foi celebrado à distância mesmo. "Nessa fase eu senti o baque de estar sozinha nessa situação, mesmo conversando o tempo todo com ele ou com minha família no interior, porque não era a mesma coisa. Eu fui de ir todos os dias para a faculdade e para o trabalho, convivendo com dezenas de pessoas, para apenas eu e meu cachorro. Por mais que eu esteja acostumada a ficar sozinha sem problemas, tinha hora que eu queria um abraço, sabe?".

Para a jornalista, aliás, era um sentimento duplo: de um lado, ela lidava com a solidão e o medo de estar só e, por outro, sabia que topava o isolamento por um bem maior. "Eu agradecia por morar sozinha porque, caso eu me contaminasse, eu não iria colocar as pessoas da minha casa em risco, e ser responsável pela contaminação de outra pessoa é algo que eu jamais quero carregar comigo", completa.

Raphael Brito é quadrinista e designer e mudou de apartamento para morar sozinho pela primeira vez no começo do ano passado. Entre descobrir como seria essa nova dinâmica, ele precisou, ao mesmo tempo, lidar com a rotina de trabalho, suas quatro gatas e a aprender a cuidar de uma casa sem ajuda. Tudo isso se viu refletido em uma rotina que ele definiu como solitária. "A maior dificuldade com certeza é a solidão, a falta de toque e contato que dá em alguns dias. Mesmo que eu veja amigos próximos num intervalo regular, a falta dos encontros casuais (no metrô, na rua, na feira, por exemplo) fez com que eu me sentisse mais sozinho. Como segundo ponto, e talvez mais importante, eu trago o trabalho como maior dificuldade. Se organizar sozinho numa rotina que englobe você trabalhar, cuidar de você e da casa e ainda descansar é bem difícil, porque você fica meio que você por você mesmo, e a dinâmica do mercado de trabalho suga muitas (mas muitas mesmo!) horas por dia."

Mudança de rotina… emocional

Para Fernanda, a rotina não mudou tanto assim com a chegada da pandemia no Canadá. A designer já trabalhava em regime de home office e equilibrava o tempo em casa e sozinha com saídas com as amigas e a vida social do lado de fora. Com a pandemia, o dia a dia, em si, não mudou tanto, mas ela precisou lidar com questões emocionais que afetaram a sua autoestima e o seu otimismo. "Nos últimos dois meses, eu senti que o meu emocional oscilou bastante e eu tive dias bem ruins, sem motivação nenhuma. Eu espero que as coisas melhorem daqui para a frente", conta.

Por aqui, Jéssica sentiu um baque duplo, tanto de rotina, quanto emocional, desde o começo. Ela, que já sofre de Transtorno de Ansiedade, vinha passando por uma série de mudanças que pioraram o quadro, e a pandemia, como ela mesma diz, "multiplicou isso por mil". "Eu vivia em estado de extrema ansiedade, preocupada em não me contaminar, preocupada com meus pais que não estavam levando a pandemia tão a sério porque moram em uma cidade com poucos casos e tinham a falsa sensação de segurança, preocupada em não adoecer por outros motivos e ter que ir ao médico ou hospital e correr risco de me contaminar. E passar por tudo isso sozinha, com o acréscimo de ser meu último ano na faculdade e entregar o trabalho de conclusão de curso, foi muito desgastante para mim", relata.

A saída em se apegar às pequenas coisas cotidianas
Dado o cenário mundial e pessoal de cada um, ficar em casa 24 horas por dia virou a nova rotina (ou o "novo normal", como muitos insistiram em falar no começo da pandemia). O jeito, então, foi, mesmo com medo, insegurança e incertezas batendo à porta, buscar maneiras de tornar esse tempo o mais agradável possível, principalmente para garantir o mínimo de sanidade e bem-estar mental.

"O fato de eu ter uma cachorrinha em casa me ajudou bastante", diz Fernanda. "Por mais que não seja a mesma coisa do que interagir com uma pessoa, eu não me senti tão sozinha e usei a companhia dela para me distrair um pouco do caos de lá fora. Outra coisa que me ajudou de alguma forma foi iniciar uma reeducação alimentar e cuidar mais da minha saúde. Comecei em abril do ano passado a fazer jejum intermitente e comer alimentos mais saudáveis. Além de exercícios aeróbicos em casa, eu também tenho assistido programas de variedade asiáticos e estou estudando japonês e coreano."

Jéssica conta que ficar em casa costumava ser o seu programa de sempre antes da pandemia, mas, com o isolamento "forçado" e o tempo extra entre quatro paredes, começou a buscar hobbies diferentes para experimentar ao longo dos meses. De tie dye a cuidar de plantas, até bordado ela experimentou. "De tédio eu não morri!", brinca.

O quadrinista também decidiu colocar o tempo em casa a seu favor, pensando ainda em aumentar o faturamento mental. "Aproveitei esse tempo para dar andamento em projetos paralelos e desenvolvimento de habilidades para complementar a renda. Comecei a pintar quadros, entrei em projetos editoriais e também comecei a estudar (de leve) tatuagem. Coloquei planos em prática em 2020, coisas que estava adiando fazia muito tempo."

Produção também pode ser prejudicial
Importante notar que não é, nem foi, nem continua sendo uma obrigação ou um pré-requisito transformar o tempo em casa em algo produtivo, ainda mais quando lidamos com sensações tão complicadas conectadas à situação que se desenrola no mundo. No entanto, para muitas pessoas foi importante buscar maneiras diferentes de distrair a cabeça e relaxar a mente e o corpo. Não é à toa que as pessoas que seguimos no Instagram se viram obcecadas por plantas, por cozinhar (quem aí entrou na moda do pão caseiro?), por bordado e até pela própria leitura. Tudo para tirar o foco da ansiedade e, principalmente, das notícias.

Outro movimento que vimos foi o de pessoas que moram nas grandes cidades e que decidiram levar o home office para outro lugar - uma casa na praia ou no campo, por alguns dias -, para sair um pouco de casa, mudar de cenário e desestressar. Jéssica foi uma dessas pessoas.

"Me programei o ano inteiro para passar o mês de dezembro no interior com minha família. Foi o máximo de irresponsabilidade que fiz. Tomei todos os cuidados para não me expor ao vírus antes de viajar, fui dirigindo meu carro, só eu e meu cachorro, sem parar na estrada e me isolei por um tempo quando cheguei lá antes de ter contato direto com meus pais", conta. "Passei um mês lá e quando retornei para Salvador me isolei por duas semanas antes de voltar a minha rotina e poder ver meu namorado, para ter certeza de que não iria contaminar ninguém."

Desde que a pandemia começou no Brasil, Raphael viu os pais e o irmão apenas uma vez, em novembro do ano passado para um almoço na sua casa em um sábado. No final do ano, no entanto, decidiu passar 10 dias com a companheira na chácara da família em Sorocoba. "Moro no centro de São Paulo, então imagine o impacto que foi ir para o meio do mato. Eu amei. Achei que precisava ir para um lugar completamente diferente do meu apartamento".

Por questões financeiras, Fernanda foi do time de pessoas que passou o último ano no mesmo lugar, sem sair da cidade ou de casa, com exceção de questões de necessidade, como ir ao mercado. "Alguns meses atrás, quando a pandemia não estava tão caótica aqui no Canadá, eu me encontrei algumas vezes com algumas amigas em parques e lugares abertos. Mas, em geral, tenho ficado em casa 24/7 e só saio para fazer compras no supermercado. Eu gostaria bastante de viajar este ano (para o Brasil e também para algum outro país), mas acho que por conta desse cenário incerto, vou acabar deixando para o ano que vem. A minha saúde é mais importante e eu não gostaria de arriscar".

Para quem vive só (ou não) o momento é de cuidar
Nunca se falou tanto sobre saúde mental e, seja morando só ou com a família inteira, muita gente começou a se atentar para o que sentia e pensava e viu a necessidade de cuidar mais de si. Jéssica conta que essa atenção se transformou em um novo hábito: fazer terapia.

"Como notei que minha saúde mental estava muito destruída quando 2020 acabou, e por ter tido reações muito fora do normal em algumas situações de conflito, eu comecei a fazer terapia assim que voltei de viagem. Já que a pandemia não vai acabar tão cedo no Brasil, é melhor eu cuidar da minha saúde mental para não passar pelo o que passei em 2020 por não saber lidar com tantas emoções novas e tantos momentos de estresse que as incertezas causam", conta.

Raphael seguiu pelo mesmo caminho, buscando colocar todo o processo resultante das sessões em prática. "Eu fazia terapia há alguns anos já", lembra. "O que fiz foi centralizar mais o processo terapêutico em mim, e na minha vulnerabilidade e dor. Isso me fez ter um progresso, como homem e pessoa, em vários aspectos. O isolamento fez a gente encarar coisas que muitas vezes deixávamos de lado por causa dos amigos e da vida social."

As autoridades de saúde mundial já atentaram para o boom de doenças mentais que podem surgir derivadas do período pandêmico. Mas não é preciso esperar pelo futuro, já é possível perceber, agora, como a ansiedade, as incertezas sobre o que vem por aí e a crise econômica têm afetado a população global. O luto, seja por perder alguém próximo ou por uma grande ruptura de vida (como a perda de um emprego que sustentava a família), o medo de adoecer e a saudade atingiram níveis máximos e, para aqueles que podem e tem acesso à informação, olhar para dentro pode ser a saída para cuidar de si mesmo e estimular isso nos demais.

Estabelecer uma rotina com bons hábitos é uma forma de começar esse cuidado. Que seja comer uma fruta durante o dia, bons hábitos puxam outros bons hábitos. Trazer plantas para dentro de casa ajuda com a sensação de bem-estar e também nos coloca em contato com a natureza e estimula o nosso lado cuidador - depois de um tempo, você vai se ver tentando entender como deixar aquela planta mais saudável a todo custo!

Encontrar distrações, seja com estudos de uma nova língua ou de um assunto de interesse, ou adquirindo um novo passatempo também vale a pena - e lembre-se que colocar o seu corpo em movimento (por exemplo, fazer colagens com tesoura e papel, costurar, até mesmo cozinhar) nos aproxima do momento presente e ajuda a esvaziar a cabeça.

Exercícios físicos são essenciais para uma vida saudável independentemente de viveremos uma pandemia ou não. Se for difícil encontrar motivação para se movimentar mesmo que por 10 minutos ao dia, lembre-se que o exercício físico melhora a sensação de bem-estar, o humor, diminui a ansiedade e o estresse e ainda melhora o sono.

Por último, mas não menos importante: se necessário, peça ajuda. É possível fazer atendimentos psicológicos ou psiquiátricos sem sair de casa, e não é um problema você precisar contar com alguém para lidar e entender o que sente. É possível também conversar com voluntários de serviços de acolhimento, como é o caso do CVV, (disque 188 de qualquer telefone, a qualquer hora do dia ou da noite), ou da sua própria rede de apoio - uma ligação ainda é uma forma de contato, mesmo que à distância.

Também não é preciso fazer todas as atividades apontadas acima, mas é importante para a saúde mental começar de algum lugar. Exercícios de auto-observação (como ter um diário), uma atividade fora das telas e tempo para compreender o que se sente são e serão cada vez mais essenciais para navegarmos por tempos incertos.

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