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02/01/2024 às 09h03min - Atualizada em 02/01/2024 às 09h03min

Com a chegada dos macacos-bugios, ‘canto da chuva’ vai voltar à Floresta da Tijuca

Um Só Planeta
Ilustração | Freepik
Em tempo de mudanças climáticas, vozes que há mais de século haviam desaparecido da cidade do Rio de Janeiro em breve retornarão para anunciar a chuva. A Floresta da Tijuca vai voltar a cantar com a reintrodução de um grupo de bugios, prevista para as primeiras semanas de 2024. Também chamado de guariba, macaco-ruivo ou barbado, pela exuberância da pelagem, o bugio, segundo uma antiga crendice popular, faz ainda mais jus ao antigo nome de macaco meteorologista, pois “canta” quando vai chover.

Um macho e seis fêmeas serão soltos para formar o segundo grupo da floresta. Lá já vivem nove desses macacos, graças ao projeto iniciado em 2015 pelo Refauna, uma ONG dedicada ao repovoamento da Mata Atlântica, criada por cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). A reintrodução é feita com o apoio do Parque Nacional da Tijuca (PNT) e do Centro de Primatologia do Estado do Rio (CPRJ/Inea).

“A Floresta da Tijuca é um sucesso de restauração vegetal. Mas continua um deserto de fauna. Das 33 espécies de mamíferos de médio e grande porte que se sabia existir, hoje há apenas 11. Estamos dando um passo. Mas ainda falta muito. Estima-se que só no Setor Floresta do PNT deveria haver mais de 1.500 bugios”, destaca o diretor-executivo do Refauna, Marcelo Rheingantz, da UFRJ.

Frutas apodrecem

O PNT sofre da síndrome da floresta vazia, onde as frutas apodrecem no chão porque não existem animais para comê-las. Sinal disso é que o grupo de bugios pioneiro, aumentado com o nascimento de um filhote este ano, raramente é ouvido. Isso acontece porque, provavelmente, não há com quem se comunicar.

O canto do bugio (Alouatta guariba) é uma das vozes mais poderosas da natureza. Os machos emitem um som grave, capaz de ser ouvido a mais de um quilômetro de distância. Sua voz chega a alcançar 130 decibéis, um pouco menos que uma turbina de avião. Porém, mais do que alarme meteorológico da natureza, a voz potente é um instrumento social, para comunicação entre grupos e defesa de território, por exemplo.

E, apesar da voz de tenor turbinado, o bugio quase sempre é silencioso. Diferentemente dos irrequietos micos e macacos-prego, os bugios vivem a maior parte do tempo na mais completa serenidade. Podem passar horas a fio parados nos galhos mais altos da floresta, bem juntos.

São tão discretos que, se calados, dificilmente são percebidos, a despeito de serem um dos maiores macacos das Américas. Os machos podem superar 50 centímetros sem contar a cauda, que passa de 60 centímetros, e pesam até sete quilos. Os machos são marrons avermelhados e as fêmeas, castanhas, quase pretas. Ambos têm barba.

O rugido que ecoa pelas matas se deve a um osso hioide (que fica entre a laringe e a base da língua) supercrescido, uma das peculiares da espécie que já foi comum, mas hoje, devido à epidemia de febre-amarela silvestre, está entre as mais ameaçadas do mundo.

No Rio de Janeiro, o drama do bugio é pior e mais antigo. A espécie, nativa da Mata Atlântica, foi extinta do município no século XIX por caça, perda de habitat e, possivelmente, pela febre-amarela.

O Refauna começou a reintrodução de bugios entre 2015 e 2016. Havia previsão de que um segundo grupo seria solto em 2017, mas a epidemia de febre-amarela silvestre naquele ano atingiu seres humanos e dizimou os bugios no Sudeste. A mortalidade foi tão grande que primatologistas a consideraram o maior massacre da história recente na Mata Atlântica.

Impacto da febre-amarela

Os macacos são mais vulneráveis do que o ser humano à febre-amarela, e o bugio é o mais suscetível deles. É também um aliado da saúde pública, uma importante sentinela ambiental para a doença, transmitida por mosquitos silvestres. A febre-amarela urbana, transmitida pelo Aedes aegyti, não ocorre no Brasil desde a primeira metade do século XX.

Rheingantz explica que a reintrodução foi suspensa durante a epidemia de febre-amarela. Porém, graças a uma parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) foi possível adaptar a vacina de seres humanas para os demais primatas. Isso permitiu a vacinação de micos-leões-dourados e dos bugios que serão soltos no PNT.

Mas o drama dos cantores barbados não terminaria aí. A salvo da febre-amarela, os bugios tiveram que esperar mais uma vez, em 2020, quando a pandemia de Covid-19 paralisou o planeta.

Em 2023, após uma longa espera, os bugios finalmente ficaram prontos para viver na floresta, que um dia foi povoada por sua espécie, mencionada pelo pai da Teoria da Evolução, Charles Darwin, em sua visita ao Rio de Janeiro, em 1832.

Em abril deste ano, o Refauna instalou os macacos num recinto especial preparado para eles, dentro da floresta. Vez por outra, os bugios livres se aproximam dos macacos que serão reintroduzidos. E cantam, para alegria dos poucos privilegiados que já os ouviram.

“Temos conseguido registrar a voz deles e estamos otimistas que com a liberação do novo grupo. A floresta vai voltar a cantar”, frisa o biólogo da Refauna Matheus Sette e Câmara.

Hope é a nova líder

O macho do novo grupo, batizado de Max, e seis fêmeas esperam apenas a adequação do equipamento para monitoramento para que sejam liberados. Max é um macho mais velho, e os pesquisadores estimam que tenha 15 anos. A fêmea mais velha é Mel, de 13 anos. Mas a filha dela, Hope, de 6 anos, tomou da mãe a liderança e hoje é a fêmea dominante.

Assim como Juvenal e Kala, o casal dominante do bando pioneiro, de 2015, Max e Mel nasceram selvagens, foram resgatados por motivos variados e levados para o CPRJ. Hope é filha de Mel com um macho chamado Cesar, que não foi selecionado para reintrodução porque havia se acostumado demais a seres humanos.

“Temos que deixar os macacos serem selvagens, livres, criaturas da mata. Lá é o lugar deles”, salienta Rheingantz.

Refaunar significa devolver função ecológica e paisagem para uma floresta a que o Rio deve tanto, frisa a chefe do PNT, Viviane Lasmar. E é ainda motivo de alegria e orgulho para a população.

“A reintrodução dessa nova família de bugios, depois de tanto trabalho, significa que a biodiversidade está ganhando força. Uma floresta com seus animais nativos é uma floresta saudável, capaz de oferecer serviços como lazer, água, captura de carbono, controle de temperatura, contenção de encostas e muito mais”, diz Lasmar.

O Refauna já reintroduziu também no PNT cutias e jabutis. E o bugio, como as cutias, é um semeador de plantas da Mata Atlântica. Mas trazer de volta a fauna nativa vai muito além de serviços ambientais. É que a floresta é mais que um ambiente, é um conjunto de sensações. Esses animais trazem antigos sons. E ainda aromas. O do macaco barbado que sabe cantar é adocicado como o das frutas silvestres.

“Queremos sentir a floresta cheirar e cantar”, diz o biólogo Câmara.

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