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02/05/2019 às 16h56min - Atualizada em 04/05/2019 às 23h00min

Autismo: a solução está em suas mãos

Docente relata vivência ao lado do filho autista e pede maior participação da sociedade

Assessoria de Imprensa
Foto: Divulgação
“Quando meu filho nasceu, há 17 anos, fizemos todos os exames que nos foram pedidos, e os resultados não indicaram nenhuma anomalia. De fato, nos meses seguintes, João Pedro sentou, engatinhou e caminhou normalmente, dentro dos prazos previstos. De repente, com um ano e oito meses, ele parou de falar. Como meu marido e eu estávamos temporariamente afastados do trabalho, para a conclusão dos nossos mestrado e doutorado, e cercávamos o menino de cuidados, chegamos a ser acusados de mimá-lo demais, de não criarmos para ele as necessidades próprias da idade.

Iniciou-se, então, um período difícil, em que nos sentíamos extremamente culpados. Havíamos criado, imaginávamos, uma criança mimada, geniosa e agressiva. Será que não soubemos educá-lo? Fomos negligentes ou, ao contrário, excessivos ao dar-lhe carinho? Impedimos, enfim, o que seria o seu desenvolvimento normal? Em nossa sociedade, acusações dessa natureza são dirigidas principalmente às mães, que costumam ter maior contato com os filhos, e eu me sentia péssima. O ambiente em minha casa deteriorou-se rapidamente. Eu estava com 32 anos, João Pedro era meu único filho, para quem eu havia me preparado tanto, e eu estragara tudo.

Quando ele passou a dar sinais de que também não estava ouvindo, decidimos que era hora de procurar ajuda. Foram realizadas uma série de exames, e nada foi constatado. Suas estruturas fonoaudiológicas estavam perfeitas, e tudo indicava que o problema era neurológico. Por essa época ele foi se tornando mais e mais agressivo, conosco e com ele mesmo, chegando a colocar em risco a própria integridade física. Batia a cabeça contra a parede, jogava-se no chão com violência – vivia com a testa machucada. Qualquer evento não previsto, por menor que fosse – uma campainha, por exemplo –, provocava uma revolução na casa: ele chorava, deixava de comer, atirava os brinquedos longe... O neurologista nos assegurou que não havia nenhuma estrutura mental desorganizada, mas uma falta de amadurecimento do sistema nervoso central e a suspeita de que o comportamento de João Pedro pudesse fazer parte do espectro autista. Nosso filho tinha pouco mais de três anos, e era a primeira vez que ouvíamos a palavra ser usada para descrever o comportamento dele. Autismo.

A palavra, não demoramos a descobrir, era extremamente estigmatizante. Era como se João Pedro tivesse uma moléstia contagiosa. Foi muito triste perceber como as pessoas tendem a reagir diante de algo que foge às regras estabelecidas. A família passou a nos evitar, e diante do constrangimento das pessoas a gente também começou a se isolar. Cheguei a ouvir de um parente muito próximo que ele não se sentia à vontade na presença de João Pedro. Foi muito triste. Estávamos assustados, nosso mundo estava se estilhaçando. Fomos então buscar ajuda com um psiquiatra, que nos indicou um especialista em autismo, em São Paulo.

Para nossa surpresa, o médico afirmou que João Pedro não era autista – o que ele tinha era chamado de Transtorno de Défict de Atenção e Hiperatividade, ou TDH. Dos males, o menor, pensamos: nosso filho era hiperativo e seria tratado com Ritalina. Na primeira administração do remédio, no entanto, tivemos que trancar João Pedro no quarto: ele teve um rebote, parecia querer subir pelas paredes, transpirava muito, estava branco como cera, parecia que ia morrer, e quebrava tudo dentro de casa. Ligamos para o especialista, que se reconheceu impotente diante do caso e abriu mão dele. Desesperados, chegamos a procurar ajuda espiritual.

A essa altura, João Pedro contava com seis anos de idade, e ainda resistíamos à idéia de colocá-lo em uma escola especial. Voltara a falar com uns quatro anos e meio e também começou a ler. Toda sua atenção se voltou, então, aos assuntos bíblicos. Interessou-se vivamente pela história dos santos, estimulado, talvez, pelas imagens sagradas que eu mantinha em casa. Chegamos a ir até Aparecida, a pedido dele, que foi de joelhos da porta da igreja até o altar da Sagrada Família. Hoje, ele tem 37 bíblias e sabe tudo sobre o Velho e o Novo Testamentos. Ate aí, continuávamos com o diagnóstico de TDH, que era confortável, mas tínhamos nossas dúvidas.

Eu havia acabado de ser aceita na Unesp, Câmpus de Marília, quando as evidências não puderam ser mais negadas: meu filho estava mesmo inscrito no espectro autista. Aquilo mudou as nossas vidas. Eu era arrimo de família, e até aquele momento não havíamos conseguido construir nada. As questões afetivas também foram bem prejudicadas. E, como se não bastasse, minha mãe, que morava com a gente e nos ajudava bastante, morreu. Foi muito, muito difícil.

Depois de rodar por aí, sem sucesso, em busca de ajuda, e quando tudo indicava que nos encontrávamos de fato num beco sem saída, o apoio chegou de onde menos esperávamos. Descobrimos, em Marília mesmo, o Espaço Potencial para Autistas, um local mantido pela Prefeitura e coordenado por mães da cidade em situação parecida com a minha. Mas foi também um momento doloroso de aceitação, de luto mesmo. Enterramos todas as expectativas que tínhamos em relação ao João Pedro, para que pudesse nascer uma outra pessoa no lugar dele. Admito, sentimos muita vergonha, e alguma revolta também. Fomos excluídos do meio social e tínhamos que conviver com o preconceito. Eu tinha doutorado – mas e daí? Eu sentia inveja das mães que passeavam orgulhosas com seus filhos saudáveis. As pessoas me diziam: isso é uma benção em sua vida. Mas eu não concordava. Benção é ter um filho sem problemas, pensava.

Hoje, isso mudou. Meu marido e eu crescemos como pessoas. Passamos a valorizar as pequenas coisas, como sentar para tomar um sorvete na lanchonete da esquina. No convívio com outros pais fomos descobrindo formas alternativas de viver, e novos caminhos foram aparecendo. O encontro com o Espaço Potencial para Autistas foi um divisor de águas, com médicos jovens e bastante competentes.

Nossa luta, agora, é pela diminuição de medicamentos, que são muito agressivos, além de caros. Recomendo aos pais que tenham alguma suspeita nesse sentido, que, antes da medicação, busquem alternativas mais brandas. Algumas crianças do Espaço Potencial para Autistas, inclusive, não tomam remédios.

João Pedro, hoje com 17 anos, nunca freqüentou uma sala especial. Assiste os noticiários na tevê, lê os jornais – sabe a linha editorial de cada um deles –, tem coleções de livros sobre arte e adora literatura. Vai bem na escola, onde já deu várias palestras, e tem muita facilidade na área de Humanidades, e menos na de Exatas. Tem, claro, suas idiossincrasias: pode se lembrar, por exemplo, da data de nascimento do pintor espanhol Goya, mas depende de ajuda para se lembrar de escovar os dentes ou pentear os cabelos. Isso mostra que, quando a criança tem ofertas, ela vai longe, vai conseguir seu lugar sociedade, vai se capacitar profissionalmente, vai constituir seu grupo de amigos. Esse é o grande desafio do autista: a inserção social. Daí a importância de campanhas como a Abril Azul, que favorece o aparecimento de outros espaços potenciais, que acolhe as famílias e trabalha para que evitem eventos que possam afetar essas crianças. A solução para os problemas de todo ser especial, e não só do autista, está nas mãos da sociedade.   
 
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