O presidente Jair Bolsonaro tem até esta quinta-feira para decidir se vetará ou não a lei de abuso de autoridade, aprovada no Congresso O adiamento da decisão até o limite do prazo reflete a "sinuca de bico" em que se encontra o presidente. De um lado, sofre intensa pressão de parte da população, que entende que a lei vai enfraquecer o combate à corrupção, ao prever punições para policiais, promotores e juízes que fizeram mau uso de seu poder para prejudicar ou beneficiar alguém.
De outro lado, corre o risco de irritar a maioria dos parlamentares, desgastando sua relação com o Congresso. O presidente tem propostas impopulares pela frente a serem apreciadas, em especial no Senado, como a Reforma da Previdência e a indicação de um dos seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), para assumir a embaixada brasileira nos Estados Unidos.
O presidente chegou a dizer nesta terça, em café da manhã com jornalistas do jornal Folha de S.Paulo, que seu filho perderia muitos votos com os vetos e, por isso, seguraria mais um pouco a formalização da indicação.
"Olha, estou ali, entre a cruz e a espada, porque, se eu vetar tudo, crio um problema com parte do Congresso e, obviamente, a população vai aplaudir. Se eu não vetar nada, crio um problema com a população", reconheceu o próprio presidente, na semana passada, segundo relato da líder do governo no Congresso, deputada Joice Hasselmann (PSL-SP).
Na tentativa de se equilibrar entre os dois grupos, o presidente deve vetar parcialmente a proposta. "Deve chegar a quase 20 (vetos). Tem artigo que tem que ser mantido porque é bom", disse a jornalistas, na porta do Palácio do Alvorada, ontem de manhã.
Queda de popularidade, aumento de vetos?
O alcance dos vetos sinalizado por Bolsonaro ficou acima do defendido pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, que divulgou uma lista de 11 artigos a serem derrubados. Entre eles, estão os que tornam crimes: decretar prisão "em manifesta desconformidade com as hipóteses legais"; constranger o preso a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro; submeter o preso ao uso de algemas quando "manifestamente não houver resistência à prisão"; e "impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado".
Na avaliação do cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria, o aumento do desgaste do presidente Bolsonaro "elevou os incentivos políticos" para que ele vete um trecho maior da lei, em aceno aos que veem ameaças ao combate à corrupção, mesmo que isso signifique desgaste com o Congresso.
Segundo pesquisa do Instituto Datafolha realizada no final de agosto, a reprovação do presidente alcança 38% da população, uma alta em relação ao patamar de 33% auferido no levantamento realizado no início de julho. Já o índice dos que consideram o governo regular passou de 31% para 30%, enquanto o dos que acham a gestão ótima ou boa recuou de 32% para 29%. O restante (2%) não soube responder.
Além disso, 44% dos entrevistados disseram que não confiam na palavra do presidente, enquanto 36% confiam eventualmente e 19%, sempre.
Bolsonaro foi eleito prometendo fortalecer o combate à corrupção no país. Seu compromisso com essa agenda, porém, tem sido colocado em xeque por uma série de fatores, a começar pelas investigações contra outro filho seu, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), para apurar possível desvio de verbas do seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O parlamentar, aliás, votou a favor da lei que agora está na mesa do seu pai para sanção ou veto presidencial.
Já nas últimas semanas, o presidente deixou claro que não pretende indicar um nome com autonomia para comandar o Ministério Público Federal no lugar da atual procuradora-geral da República, Raquel Dodge, assim como deu declarações que minimizavam a importância de Sérgio Moro e ameaçou intervir na Polícia Federal (PF).
"Se eu não posso trocar o superintendente (da PF no Rio de Janeiro), eu vou trocar o diretor-geral (Maurício Valeixo). Se eu trocar hoje, qual o problema? Está na lei. Eu que indico, e não o Sergio Moro. E ponto final", disse Bolsonaro, em uma dessas ocasiões.
Para Cortez, um número reduzido de vetos representaria "mais um momento de conflito com o ministro da Justiça", que ainda goza de grande apoio popular, mesmo após o escândalo da "Vaza Jato" - série de reportagens do site The Intercept Brasil que indicam possíveis ilegalidades da Força Tarefa da Lava Jato e de Moro quando era juiz dos casos da operação em Curitiba.
"Se os eventos das mensagens (entre autoridades da Lava Jato reveladas pelo site The Intercept Brasil) sugeririam o presidente ganhando maior autonomia em relação a Sergio Moro, o desgaste nas pesquisas torna cada vez mais importante para o presidente fidelizar essa parcela do eleitorado que responde a sinais no campo ao combate à corrupção e no campo do distanciamento do esquerdismo", observa Cortez.
"Me parece que o cenário mais recente vai no sentido de aumentar a ambição dos vetos na lei de abuso de autoridade", acrescenta.
Reação à Lava Jato?
Os críticos à nova lei de abuso de autoridade, que atualiza a legislação de 1965, dizem que ela é uma reação à Lava Jato. Já seus defensores afirmam que se trata de coibir o desrespeito aos direitos dos cidadãos pelo aparato repressor do Estado.
Se a lei sob análise de Bolsonaro já existisse no Brasil desde 2014, quando começaram as apurações da Lava Jato, ela daria margem para que policiais, procuradores e juízes envolvidos nas investigações fossem punidos em pelo menos quatro ocasiões. Moro poderia ter incorrido em crime ao divulgar a conversa entre os ex-presidentes Lula e Dilma, em 2016, assim como ao determinar a condução coercitiva do ex-presidente no mesmo ano, sem antes ter convocado seu depoimento.
O mesmo Moro e o atual diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, poderiam ter cometido crime na "guerra de liminares" envolvendo a soltura do ex-presidente Lula, em julho de 2018. Policiais federais talvez fossem punidos por algemar e acorrentar os pés de Sérgio Cabral, em 2018.
Para a Associação dos Juízes Federais (Ajufe), o projeto "prejudica fortemente as instituições de Estado destinadas à aplicação da lei e à persecução de práticas criminosas, vulnera a separação dos poderes e a independência do Poder Judiciário e do Ministério Público e fornece poderosa ferramenta de retaliação contra Juízes/as, Promotores/as, Policiais e Fiscais em benefício de pessoas acusadas".
A nova lei gerou repúdio mesmo entre alguns juristas críticos dos métodos da Lava Jato, como o juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro João Batista Damasceno, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
Na sua avaliação, a lei permitirá perseguição a juízes que contrariem interesses políticos, ao mesmo tempo em que pode não ser efetiva entre os que de fato realizam abusos, dado o corporativismo dentro do Judiciário e do Ministério Público. "Não será com lei penal que vamos resolver o problema do autoritarismo no Brasil", disse à reportagem.
Por outro lado, o projeto recebeu apoio de deputados e senadores de vários partidos, e de várias orientações ideológicas. Em nota, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) também se manifestou a favor do texto, lembrando que a aplicação da lei dependerá de promotores e juízes.
"Os grandes avanços obtidos nos últimos tempos no combate à corrupção não serão atingidos pela nova Lei que pune o abuso de autoridade, até pelo fato de que tal análise será feita pelo Ministério Público e julgado por um integrante do próprio Poder Judiciário", diz a nota.
O relator da proposta na Câmara, deputado federal Ricardo Barros, disse ao jornal O Globo que pelo menos quatro pontos não deveriam ser retirados da legislação: a condenação por negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação; a possibilidade de perda do cargo, mandato ou função pública a partir da condenação (em caso de reincidência); a condenação por obtenção de prova por meio manifestamente ilícito; e decretar prisão ou deixar de conceder liberdade em manifesta desconformidade com a lei.
Para o deputado Luiz Flávio Gomes (PSB), também defensor da nova lei, apenas poucos artigos deveriam ser vetados, por não estarem bem redigidos.
É o caso, na sua avaliação, do artigo que pune a autoridade que algemar presos mesmo "quando manifestamente não houver resistência à prisão, internação ou apreensão, ameaça de fuga ou risco à integridade física do próprio preso, internado ou apreendido, da autoridade ou de terceiro".
"O presidente pode vetar dois ou três artigos, mas se desfigurar a lei, pode gerar um grande mal estar com o Congresso", disse à BBC News Brasil.
Antes de entrar para a política, Gomes atuou como promotor de Justiça, juiz e advogado. "A lei estabelece que será preciso provar que a autoridade teve intenção de prejudicar a pessoa, ônus que caberá a quem acusa a autoridade. O Congresso teve o cuidado de cercar (a lei) de várias cautelas para que não haja abuso na lei de abuso", ressalta ainda, ao defender a proposta.