A usina de Itaipu, a maior geradora de energia elétrica do mundo, prepara-se para um “novo normal”. A hidrelétrica completa 50 anos em maio de 2024 e passa por uma fase de replanejamento para um novo cenário que se impõe: mudanças climáticas, independência da Eletrobras e dívida paga.
Na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, Itaipu foi construída de 1974 a 1982 em uma parceria dos governos dos dois países, que na época viviam sob ditaduras. O acordo assinado em 1973 trata da construção da usina e das diretrizes do funcionamento dela, incluindo as condições financeiras.
Na prática, o que especialistas e o próprio comando de Itaipu esperam é que a usina passe a vender energia mais barata ao Brasil em seu pós-50 (leia mais abaixo). No entanto, ainda há variáveis em aberto nessa equação, assim como existem chances de a hidrelétrica reduzir a quantidade de energia gerada anualmente devido à crise hídrica, cujo término ainda não aparece num futuro próximo.
Em 2020, Itaipu gerou 76.382 gigawatts-hora (GWh) em energia elétrica. Foi, sozinha, responsável por suprir 10,8% de toda energia consumida pelo Brasil no ano. No Paraguai, ela abastece 85% da energia consumida.
Contudo, tanto o volume de energia gerada quanto a participação da hidrelétrica no suprimento de energia do mercado brasileiro já foram maiores. Em 2016, a usina estabeleceu seu recorde anual de geração de energia: foram 103.098 GWh gerados, fornecendo 16,8% da energia consumida no país.
“A crise hídrica é resultado do aquecimento global e do desmatamento na Amazônia. Isso não tem solução imediata”, alerta o especialista.
Itaipu diz que tem trabalhado para aumentar a eficiência e gerar cada vez mais energia com a mesma quantidade de água que passa pelas turbinas. Informa que também está investindo no plantio de árvores e na preservação da mata no entorno do reservatório para que cada vez mais água chegue até ele.
Nem a usina nem Castro sabem, porém, quanto a escassez de água vai durar e impactar a hidrelétrica em longo prazo. O professor não acredita que Itaipu deixará de ser relevante para o mercado energético do Brasil, mas é pessimista.
“Ela vai gerar menos.” Luiz Barata, ex-diretor do ONS e com passagem pela própria Itaipu, ratifica a previsão:
“Há uma mudança climática. Com menos chuva, menos água e menos energia.” Quitação de empréstimo pode baixar o preço da energia Apesar de menor, a energia gerada por Itaipu tende a ficar mais barata no futuro — muito mais barata, inclusive. Segundo cálculos do Ministério de Minas e Energia, o preço do MWh (megawatt-hora) produzido pela hidrelétrica deve cair de R$ 349 para R$ 124 a partir de 2023 — redução de quase 70%, o que deve derrubar as contas de luz de consumidores comuns do país em mais de 4%.
O motivo é simples: em 2023, Itaipu termina de pagar o empréstimo tomado para sua construção, iniciada em 1973. As parcelas do financiamento custam por ano US$ 2 bilhões (mais de R$ 10 bilhões na cotação atual) à usina. E esse valor representa cerca de 70% do orçamento anual da hidrelétrica.
Como Itaipu não tem fins lucrativos, a expectativa do governo é que toda essa “folga” no orçamento seja transferida para o custo da energia e, consequentemente, para o consumidor. Quem acompanha o assunto, no entanto, diz que essa transferência não é garantida e pode não ser tão grande quanto a estimada.
Isso porque, junto com o fim da dívida, está previsto o fim da validade do acordo financeiro firmado entre Brasil e Paraguai para a construção da hidrelétrica, estabelecido no Anexo C do Tratado de Itaipu. O documento estabelece regras para compra e venda de energia da usina pelos dois países.
Brasil e Paraguai têm, cada um, direito à metade de toda energia gerada por Itaipu. Historicamente, no entanto, o Paraguai consome só 20%. O Brasil não só usa toda a cota a que tem direito como compra a parte não utilizada pelo Paraguai. Consome, portanto, cerca de 80% do total.
Para Gustavo Manfrim, subsecretário de Energia do Ministério da Economia, a renegociação do anexo traz oportunidades para o Brasil. Ele dá como certa a redução da tarifa de Itaipu em razão do pagamento da dívida. Ainda espera que o governo brasileiro consiga que o preço da energia da Itaipu deixe de ser calculado em dólar e que a usina também passe a abastecer grandes indústrias, vendendo energia no chamado mercado livre.
Também ex-diretor da ONS, Maurício Tolmasquim, professor do Programa de Planejamento Energético da Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ, não é tão otimista.
Ele diz que a negociação de um novo anexo é complexa pois envolve questões políticas no Brasil e no Paraguai e, principalmente, porque terá de conciliar interesses divergentes.
“O Brasil precisa de muita energia e energia barata. Já o Paraguai consome menos e tem em Itaipu uma fonte de riqueza, de geração de receita”, explica Tolmasquim.
“Estamos atrasados nessa conversa”, completa.
O dinheiro arrecadado com as vendas para a Eletrobras equivale a 7% do Produto Interno Bruto (PIB) paraguaio. O acordo atual impede que o Paraguai venda a energia a outros países. No entanto, isso pode mudar em 2023 com a renegociação do Anexo C.
A imagem de “explorador” Embaixador brasileiro no Paraguai entre 2017 e 2019, o diplomata Carlos Alberto Simas Magalhães escreveu em um relatório de sua gestão ao qual a CNN teve acesso. O documento diz que a renegociação do Anexo C é um dos pontos mais importantes e complicados da relação entre os dois países.
“A hidrelétrica tem sido apresentada também na mídia [paraguaia] como símbolo de ‘exploração’ [pelo Brasil]”, informou ao deixar o posto em Assunção. “A proximidade das negociações relativas ao Anexo C de Itaipu (previstas para 2023) devem trazer um aumento das críticas ao papel desempenhado pela entidade binacional na economia paraguaia”, afirma Magalhães.
Procurado, o Ministério das Relações Exteriores, encarregado do tema, afirma em nota à CNN que ainda estuda a questão.
“O futuro processo negociador com o Paraguai não envolve propriamente a elaboração de um novo tratado, mas a revisão de um dos anexos ao Tratado de Itaipu, o Anexo C, que regula as bases financeiras e de prestação dos serviços da entidade binacional”, diz o texto da pasta.
“O artigo VI do Anexo C determina que todas as suas disposições serão revistas após o decurso de prazo de 50 anos a partir da entrada em vigor do Tratado, a saber, 13 de agosto de 2023, quando a dívida contraída para construção da usina será totalmente quitada. As posições brasileiras com vistas à revisão do Anexo C ainda são objeto de estudo em âmbito interministerial”, acrescenta.
Pressões entre Paraguai e Brasil De acordo com o relatório do então embaixador Magalhães, tudo que remete a Itaipu é visto como questão de relevância nacional no Paraguai. A imprensa do país vizinho divulga e repercute com frequência fatos envolvendo a hidrelétrica. Disputas eleitorais e entre partidos políticos citam a usina.
Ele lembra que, em 2019, um acordo fechado entre Brasil e Paraguai por pouco não desencadeou o impeachment do presidente paraguaio Mario Abdo Benítez. Pelo acordo, em princípio sigiloso, o Paraguai se comprometeu a pagar mais pela energia de Itaipu.
O preço que cada país paga pela energia de Itaipu varia conforme a maneira de contratação. De acordo com o Anexo C do Tratado, os países precisam informar quanto de energia vão comprar por ano. Essa cota é reservada a eles, e cada MWh custa cerca de US$ 40.
Se um país precisa de mais energia do que a reservada, e Itaipu a tem disponível, ela é vendida por cerca de US$ 7 por MWh. O preço é mais baixo porque nele não incidem os custos de manutenção da usina e do pagamento do empréstimo.
O Paraguai vinha, ano a ano, pedindo a reserva de uma quantidade de energia menor do que a utilizada. Na prática, isso baixava o custo para o país.
Até que em 2018, por pressão do Brasil, o governo paraguaio aceitou aumentar sua reserva de energia, elevando em US$ 200 milhões o gasto com Itaipu de 2019 a 2022, segundo a imprensa local. O acordo, no entanto, foi mantido sob sigilo.
Diálogos sobre esse acerto foram divulgados pela imprensa paraguaia em 2019. O presidente Abdo Benítez foi acusado por opositores de prejudicar o país. Uma crise política foi instaurada e só arrefeceu depois que o Brasil aceitou que os termos do acordo fossem cancelados.
Segundo a administração da usina, a questão foi “definitivamente superada em 2019”. Brasil e Paraguai chegaram a um novo acordo, válido por quatro anos, sobre quanto cada país compra de energia de Itaipu e quanto paga por ela.
Em julho deste ano, porém, um novo impasse envolvendo Itaipu foi levantado pelo governo paraguaio. A Controladoria-Geral do Paraguai divulgou um relatório de cem páginas no qual informa que o Brasil comprou energia de Itaipu a preços menores do que os acordados entre 1985 e 1997. Por causa disso, o país supostamente deve ao Paraguai US$ 3,85 bilhões (cerca de R$ 20 bilhões).
Após a divulgação do relatório, o vice-presidente do Paraguai, Hugo Velázquez, falou sobre a possibilidade de o Paraguai exigir um ressarcimento do Brasil. Velázquez argumentou ainda que autoridades paraguaias deveriam tomar ciência do relatório antes de renegociar com o Brasil o Anexo C do Tratado de Itaipu.
“Por aí é possível ver como uma negociação entre Brasil e Paraguai sobre Itaipu não é uma coisa tão simples”, aponta Tolmasquim.
Procurou a Controladoria e o Ministério de Relações Exteriores do Paraguai. Nenhum dos órgãos se posicionou sobre o assunto.
O Ministério de Minas e Energia do Brasil disse que
“a alegada controvérsia a respeito da dívida de Itaipu tem sido alvo dos noticiários paraguaios ao longo do tempo” e negou a pendência. Já o Itamaraty informou não ter sido notificado sobre a possível cobrança do Paraguai.
A privatização da Eletrobras, mas sem Itaipu Outro ponto de incerteza, ainda que menor, diz respeito ao futuro de Itaipu desvinculada da Eletrobras, dona da metade brasileira da usina. O governo já obteve a autorização do Congresso Nacional para privatizar a estatal de energia.
Na privatização, porém, Itaipu não será vendida. Permanecerá sob controle do governo sob gestão da Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional (ENBPar), estatal recém-criada.
A ENBPar será uma holding, ou seja, uma grande empresa que controla outras companhias. A ideia é que ela administre, além de Itaipu, as usinas nucleares do país.
O Ministério de Minas e Energia e a própria Itaipu informaram que a alteração em nada deve impactar na operação da usina. Especialistas ouvidos pela CNN concordam que a chance de mudanças é pequena já que a usina permanecerá obedecendo ao tratado binacional firmado entre Brasil e Paraguai.
Apesar de pequena, no entanto, essa mudança não deve ser desprezada. Só o tempo mostrará como a hidrelétrica será administrada sob nova gestão.