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01/05/2021 às 18h33min - Atualizada em 01/05/2021 às 18h33min

'Pandemia no Brasil foi diferente do resto do mundo', diz diretora de Médicos Sem Fronteiras

Na visão da diretora-executiva da ong, pandemia no Brasil teve características totalmente diferentes em relação ao que aconteceu no resto do mundo

BBC
Foto: Divulgação
Para alcançar as 400 mil vítimas da infecção pelo coronavírus, o prazo foi cortado pela metade: bastaram 35 dias para que, neste 29/04, o país fatalmente se aproximasse do número e ficasse à beira de se tornar o segundo lugar do mundo a quebrar essa barreira (após os Estados Unidos).

Para Ana de Lemos, diretora-executiva da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Brasil, a pandemia no país é completamente diferente do que acontece no resto do mundo.

"A situação é extrema e, um ano depois que tudo começou, ainda não temos uma resposta nacional. As unidades de saúde são deixadas à própria sorte, sem protocolos de prevenção, equipamentos de proteção, oxigênio, insumos e remédios", aponta. "Muitas vidas que perdemos poderiam ter sido salvas se tivéssemos estrutura e organização", completa.

Nascida em Angola e cidadã portuguesa, Lemos é formada em Publicidade e Relações Públicas e fez pós-graduação em Gestão Ambiental, Estudos de Paz e Resolução de Conflitos, Relações Internacionais e Geopolítica.

Ana de Lemos já trabalhou em nove países e é diretora-executiva do MSF no Brasil desde 2018

Ana de Lemos já trabalhou em nove países e é diretora-executiva do MSF no Brasil desde 2018


A especialista entrou para o MSF em 2000 e trabalhou em crises sanitárias e humanitárias em várias partes do mundo, com passagens por Hungria, Libéria, Moçambique, Nigéria, Palestina, Quênia, Sudão, Tanzânia e Zimbábue.

Ela está desde 2017 no Brasil, quando passou a atuar como diretora de comunicação da ONG e foi promovida ao cargo de diretora-executiva a partir de 2018.

Recado que vem de fora
O posicionamento de Lemos está em consonância com um manifesto internacional, que foi assinado pelas altas esferas do MSF.

O texto, divulgado no site e nas mídias sociais da entidade, critica duramente a atuação do governo brasileiro durante a pandemia e classifica a situação no país como uma "catástrofe humanitária".

"Mais de um ano desde o início da epidemia de covid-19 no Brasil, ainda não foi colocada em prática por parte do poder público uma resposta efetiva, centralizada e coordenada à doença. A falta de vontade política de reagir de maneira adequada à emergência sanitária está causando a morte de milhares de brasileiros", escrevem os autores.

Em outro trecho, os líderes da entidade fazem um apelo urgente para que as autoridades nacionais reconheçam a gravidade da crise e organizem uma "resposta centralizada e coordenada".

"O governo federal praticamente se recusou a adotar diretrizes de saúde pública de alcance amplo e com base em evidências científicas, deixando às dedicadas equipes médicas a tarefa de cuidar dos doentes em unidades de terapia intensiva, tendo que improvisar soluções na falta de disponibilidade de leitos", aponta no texto o médico grego Christos Christou, presidente internacional do MSF.

"Isto colocou o Brasil em um estado de luto permanente e o sistema de saúde do país à beira do colapso", completa o especialista.

Mais à frente, a carta critica a politização das medidas preventivas cientificamente comprovadas, como o uso de máscaras e o distanciamento físico. "Alimentando o ciclo de doença e morte no Brasil está o grande volume de desinformação que circula pelas comunidades do país. Uso de máscaras, distanciamento físico e restrição de movimentos e de atividades não essenciais são rejeitados e politizados".

Christou finaliza pedindo um "recomeço" no enfrentamento da pandemia: "A recusa em colocar em prática medidas de saúde pública baseadas em evidências científicas resultou na morte prematura de muitas pessoas. A resposta à pandemia precisa urgentemente de um recomeço, baseado em conhecimentos científicos e bem coordenado, para evitar mais mortes desnecessárias e a destruição de um sistema de saúde conceituado e prestigiado."

Lemos revela que a carta teve uma grande repercussão internacional. "Recebemos ligações e contatos de pessoas de vários países, que se mostraram bastante preocupadas com a situação".

Já no Brasil, não houve nenhuma resposta formal do Ministério da Saúde ou do Governo Federal. "Já havíamos enviado outros comunicados para o ministério e tentamos reuniões. Mas entendemos que as autoridades devem estar bastante ocupadas neste momento e esperamos que estejam trabalhando para resolver os problemas", diz.

Crise sem precedentes
Lemos, que acompanha de perto o trabalho dos voluntários do MSF e tem a experiência de atuar em outros nove países , diz que não consegue comparar a situação brasileira com outros lugares do planeta. "A sensação que tenho é que a pandemia no Brasil foi diferente do resto do mundo", avalia.

A diretora relata que a ONG começou a reforçar o enfrentamento da covid-19 no Brasil ainda em abril de 2020, com foco na população de rua, migrantes, refugiados, usuários de drogas, idosos e pessoas privadas de liberdade da cidade de São Paulo.

Em 2021, o trabalho dos voluntários está mais focado na Região Norte, especialmente em Rondônia, Roraima e Amazonas. "Damos apoio ao Sistema Único de Saúde, o SUS, especialmente em áreas de comunidades indígenas e imigrantes", diz.

No momento, o MSF foca seus esforços em três estados da Região Norte do país

No momento, o MSF foca seus esforços em três estados da Região Norte do país


Nos últimos meses, um dos focos do trabalho é justamente fomentar o treinamento dos profissionais da saúde que estão na linha de frente. "Muitos médicos e enfermeiros que atuavam nas Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) tiveram que transformar rapidamente as instalações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Só o fato de ter uma equipe extra ajudando a organizar os fluxos, os protocolos de atendimento e toda essa estrutura, já faz toda a diferença", acredita.

Oportunidades desperdiçadas
Lemos é testemunha ocular de como as informações fazem toda a diferença durante uma crise sanitária. A diretora lembra que o MSF foi fundado em 1971 na França por um grupo de médicos e jornalistas.

A entidade, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1999, sempre entendeu a comunicação como um dos pontos-chave de sua atuação. Ela se recorda que, durante experiências passadas, as equipes e as instalações da entidade chegaram a ser atacadas pela população local durante surtos e epidemias.

"Em muitos locais, tínhamos que restringir o acesso aos centros de tratamento ou aos funerais, pois a transmissão de doenças infecciosas era dramática", relata. "Se as pessoas não forem comunicadas e não entenderem a importância daquelas medidas, fica impossível trabalhar durante essas crises", ensina.

E, de acordo com a visão dela, foi justamente isso o que não ocorreu no Brasil durante os últimos meses: sem uma coordenação nacional e com tantas mensagens contraditórias, as pessoas não captaram a real gravidade da covid-19.

"Ainda hoje vemos indivíduos que acreditam e usam cloroquina e ivermectina, como se elas pudessem ter algum efeito contra o coronavírus. As UTIs estão cheias de pacientes que acreditaram no kit covid", observa. "Enquanto isso, sofremos com a falta de oxigênio, sedativos e outros remédios tão necessários para os casos mais graves", lamenta.

Aprendizados e próximos passos
A diretora do MSF no Brasil espera que as autoridades tenham entendido que a prevenção da covid-19 depende mais de ações comunitárias do que da abertura de novos leitos hospitalares.

"Não se para uma pandemia na UTI, porque os hospitais são sempre o último recurso. Precisamos atuar contra a transmissão de pessoa para pessoa, com restrição da mobilidade e fechamento de todas as atividades não essenciais", sugere.

A especialista também aponta a necessidade de reforçar o uso de máscaras e de criar políticas massivas de testagem e isolamento de casos confirmados. "Boa parte do mundo já faz isso há tempos e os resultados são claros", atesta.

Ana de Lemos aponta que falta de comunicação foi fator decisivo para agravamento da pandemia no país

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E os exemplos positivos não vêm apenas de lugares ricos ou desenvolvidos: a diretora do MSF destaca o trabalho feito em nações africanas durante os últimos meses. "A despeito da subnotificação e da existência de outras doenças infecciosas impactantes, os países da África tiveram governos e políticas muito bem coordenadas, com o fechamento de fronteiras, o incentivo ao uso de máscaras e uma comunicação muito clara com os cidadãos", descreve.

Por fim, Lemos entende que o encerramento da pandemia está necessariamente vinculado à vacinação e aposta que não há solução sem cooperação internacional. "Nós defendemos, inclusive, a quebra temporária das patentes de vacinas, tratamentos e testes de diagnóstico para que se amplie o acesso a esses recursos", revela.

"Espero que as pessoas entendam que a covid-19 só estará controlada quando houver imunidade global. Enquanto tivermos pessoas desprotegidas, ninguém estará verdadeiramente a salvo", finaliza.

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